data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)
Família de Andressa, assassinada em março, guarda fotos e vídeos para recordar. Jovem morreu aos 25 anos e deixou dois filhos
Santa Maria encerrou o primeiro semestre do ano com quatro assassinatos a mais do que na primeira metade do ano passado. Em 2019 foram 22 casos registrados de janeiro a junho. Este ano, 26 pessoas morreram em crimes de assassinato. Nos últimos dez anos, a média de mortes no primeiro semestre é de 22,3, o que mostra um aumento em relação à média de 15,4% este ano. No Estado, o número de homicídios no primeiro semestre, em comparação ao ano passado, teve queda de 8,7%. Os dados foram divulgados pela Secretaria de Segurança Pública na última quinta-feira, 9 de junho.
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O delegado titular da Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DPHPP), Gabriel Zanella, explica que 25 dos casos são considerados homicídios. Mas o total de mortes violentas chega a 26 se for contabilizado um latrocínio, o roubo com morte, ocorrido no dia 30 de junho, que é investigado pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco).
A região oeste de Santa Maria foi a que mais registrou assassinatos (34,6%). A maioria das vítimas foram mortas por arma de fogo (57,3%). Já a motivação da maior parte das mortes está relacionada ao tráfico de drogas e desavenças decorrentes do crime.
TRÁFICO
Em consonância com a análise da Polícia Civil, o chefe do Comando Regional de Polícia Ostensiva Central (CRPO), coronel Erivelto Hernandes Rodrigues, reforça que a grande maioria dos crimes de homicídio têm como causa principal o tráfico de drogas:
- Tivemos uma grande apreensão de drogas no primeiro semestre deste ano. Um indivíduo que perde um número considerável do produto, por exemplo, fica com uma dívida com quem repassou a droga para ele. Muitas vezes ele não tem como ressarcir o prejuízo à entidade criminosa e ele é assassinado. Ele "paga" com a vida. Serve como aviso aos demais - explica.
Segundo o delegado Zanella, quase 90% da autoria dos homicídios este ano já foi esclarecida. Ao longo das investigações, a Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DPHPP) de Santa Maria já prendeu 34 adultos e apreendeu dois adolescentes infratores.
O delegado ressaltou o papel da Brigada Militar no trabalho preventivo ao prender indivíduos com graves antecedentes policiais em flagrante, especialmente por porte ilegal de arma de fogo e tráfico de drogas. No primeiro semestre de 2020, a BM apreendeu 137 quilos de drogas em Santa Maria e prendeu 237 foragidos ou pessoas com mandado de prisão.
Para Zanella, o distanciamento social decorrente da pandemia não interferiu diretamente na incidência de homicídios. O delegado avaliou o acréscimo dos casos registrados já no primeiro semestre deste ano em relação ao ano passado.
- Há uma tendência de que em 2020 ocorram mais homicídios do que em 2019 em Santa Maria, por conta desses casos a mais registrados este ano. Contudo, desejamos e trabalhamos para que isso não se concretize. Felizmente, estamos há mais de 35 dias sem a prática de homicídio em Santa Maria - declarou Zanella em entrevista ao Diário na última segunda-feira, 6 de julho.
Na última quinta-feira, dia 9 de julho, um homem foi morto a tiros no Bairro Passo das Tropas. Ele foi a 27º vítima de assassinato em Santa Maria em 2020.
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FACÇÕES E OS ÍNDICES
O doutor e mestre em Sociologia e um dos fundadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Marcos Rolim, lembra que desde 2017 as taxas de homicídio no Brasil têm caído. A causa mais provável, explica ele, é a trégua de uma "guerra" entre duas facções criminais com braços em todos os Estados da Federação, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
- Se as taxas de homicídio em Santa Maria têm se mantido relativamente estáveis nos últimos anos, com oscilações, será preciso investigar as razões, visto que a tendência tem sido de queda expressiva, no Brasil e no Estado já há três anos - observa.
Além de considerar vãos os esforços da polícia contra o tráfico, o especialista também aponta a falta de políticas de segurança pública e de investimentos que reduzam as chances de envolvimento dos jovens com a violência e o crime no Brasil:
- Os recursos das polícias acabam sendo drenados pela fracassada política de "guerra contra as drogas", com a qual produzimos encarceramento em massa, degradando a execução penal e alimentando as facções prisionais.
Rolim cita o exemplo da prefeitura de Pelotas, que desenvolveu o "Pacto Pelotas pela Paz", ação proposta pela ONG Instituto Cidade Segura. Por lá, a prefeitura adotou políticas estruturadas de prevenção à violência que começa na atenção às gestantes, passam pela primeira infância, educação municipal e primeiro emprego. Segundo o sociólogo, desde 2017, Pelotas teve queda de 43% nos homicídios e 62% nos roubos a pedestre.
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VIOLÊNCIA CONTRA MULHER
"Eu sempre fui tempestade, hoje que tô bem", escreveu Andressa Borba Angnes (na foto ao lado, à direita, quando criança), 25 anos, em uma mensagem de WhatsApp endereçada à irmã, amiga e confidente, Lucimar Borba Angnes, 32 anos, poucos dias antes de ser morta a tiros em casa, em março deste ano. Andressa foi encontrada sem vida no dia 23 de março, no Beco do Beijo, local conhecido pela violência ligada ao tráfico de drogas em Camobi, Zona Leste da cidade. O suspeito do crime, um irmão por parte de mãe, também foi baleado e alegou legítima defesa.
A jovem foi a única vítima de feminicídio registrada este ano em Santa Maria. Na primeira metade do ano passado, ao fim de junho, três mulheres já haviam perdido a vida nesse tipo de crime, que é motivado pelo menosprezo à condição de ser mulher ou praticado em contexto doméstico.
Cecília de Fátima de Borba, 50 anos, mãe de Andressa, teve o filho que atirou em Andressa com 13 anos de idade. Sem condições de criá-lo, deixou o menino com outra família em Santa Catarina, e veio para Santa Maria na esperança de voltar para buscá-lo, mas não conseguiu reencontrá-lo.
Em 2011, Lucimar descobriu o paradeiro do irmão, entraram em contato e, no ano passado, ele veio para Santa Maria. Morou um tempo com a mãe, mas, por envolvimento com drogas, foi mandado embora. Andressa foi a irmã que o acolheu, segundo Lucimar.
Ninguém sabe ao certo o que gerou o desentendimento entre os irmãos. Conforme Lucimar, o domingo, dia anterior ao assassinato, havia sido de paz e celebração. A família havia almoçado junto e Andressa parecia feliz.
Andressa tinha dois filhos de 3 e 5 anos. O dia em que perdeu a vida não foi a primeira vez que sofreu violência doméstica. Já havia sido agredida, segundo a irmã, pelo pai dos filhos dela, que hoje cria os pequenos.
- Ela sofreu muito na vida, foi casada com um rapaz que batia muito nela. Nesse casamento, ela acabou caindo em depressão e usando drogas. Era um anjo na vida de muita gente. Apesar das tristezas que guardava dentro dela, estava sempre sorrindo, era uma pessoa muito especial. A perda dela destruiu a nossa família. O sonho dele era ter a casa, o carro dela, um emprego, dar um bom estudo para os filhos. Ela dizia que, até o final do ano, queria pagar um implante de dentes na minha mãe, porque o seu sorriso dela era lindo e ela não tinha que ter vergonha de sorrir - relembra a irmã mais velha da vítima.
Cecília carrega no tom de voz o peso da perda. Ela também foi vítima de violência doméstica e lamenta que o histórico atravesse gerações.
- Eu pedia a Jesus que acolhesse ela nos braços, mas não assim, desse jeito. Foi ela que me levou para a igreja. Ela tinha esperança que este ano a vida dela ia dar uma guinada e melhorar. Está muito difícil viver sem ela. Nós éramos muito apegadas - lamenta a mãe de Andressa.
DESFECHO
O caso chegou a ser registrado como homicídio na delegacia, pois o suspeito alegava que a briga tinha relações comerciais. Só depois o crime passou a ser investigado como feminicídio, por ter acontecido dentro da casa da vítima e caracterizar violência doméstica.
- O que caracterizou (o feminicídio de Andressa) foi essa questão da coabitação, mas fugiu um pouco das características dos demais feminicídios - explica a delegada Elizabete Shimomura, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam).
Para ela, a diminuição em quase 70% deste tipo de crime na primeira metade do ano pode ser resultado de um esforço conjunto das forças policiais e do judiciário:
- Quero ser otimista em pensar que é um reflexo de todo o trabalho da Deam, em conjunto com toda a rede de atenção às vítimas, junto com a Vara de Violência Doméstica, que é nossa parceiríssima, o grande número de procedimentos que a gente está encaminhando, as respostas rápidas que, tanto a polícia quanto o judiciário, por meio do Ministério Público, estão dando às vítimas e aos agressores tiveram cunho pedagógico.
O suspeito de matar Andressa foi autuado no dia do crime, ficou hospitalizado sob custódia da polícia e foi liberado. Na época, a justiça negou o pedido de prisão preventiva da Polícia Civil. Conforme Shimomura, o suspeito não foi encontrado nem mesmo para depor sobre a sua versão do fato. O inquérito do caso já foi remetido à justiça. O meio irmão de Andressa foi indiciado por feminicídio e aguarda os trâmites do processo no judiciário em liberdade.
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INSEGURANÇA PERMANENTE
Entre as vítimas de 2020 está Morgana Claudia Ribeiro (foto ao lado), 37 anos, quinta transexual assassinada num período de cinco meses na Região Central. Ela foi encontrada morta na casa onde morava, no Bairro Chácara das Flores, no dia 21 de janeiro. O laudo apontou para traumatismo cranioencefálico como a causa da morte.
A amiga e ativista Marquita Quevedo conta que Morgana era alegre, prestativa e muito ligada à família. Segundo Marquita, a mãe da vítima não resistiu à depressão e faleceu meses depois da perda de Morgana. Mãe de santo, a vítima que recebia os filhos da religião na casa onde morreu, aspirava elevação espiritual. Morgana deixou uma irmã e três sobrinhos. A família não quis falar sobre o homicídio.
De acordo com o delegado Zanella, os suspeitos dos quatro crimes contra transexuais ocorridos em Santa Maria permanecem presos preventivamente. Ele informou ainda que a motivação dos homicídios não está relacionada à homofobia e à transfobia. A delegada Alessandra Padula, responsável pelo inquérito que investigou a morte de Selena Peixoto, 37 anos, em Dilermando de Aguiar, também concluiu que o crime não foi motivado por ódio. Duas pessoas foram indiciadas pela morte de Selena e também estão presas.
Apesar da resposta da Polícia Civil com a elucidação dos crimes, Marquita, que é uma das coordenadoras da ONG Igualdade, diz que o medo é uma sensação presente para a população LGBTQI+:
- Foi um choque ver que esta agressão está próxima de nós. Ficamos muito abaladas na época, andávamos em vários grupos, nos falávamos frequentemente para ver se todas estavam bem. A questão da insegurança para nós é diária e permanente - garante.
Como as vítimas perderam as vidas
- Arma de fogo - 15
- Arma branca - 9
- Estrangulamento - 1
- Instrumento contundente - 1